O Renascimento
Introdução
O Renascimento é considerado um dos mais importantes
momentos da história do Ocidente entendido por muitos estudiosos como a
ruptura entre o mundo medieval, com suas características de sociedade
agrária, estamental, teocrática e fundiária, e o mundo moderno urbano,
burguês e comercial.
Mudanças significativas ocorrem na Europa a partir de meados
do século XV lançando as bases do que viria a ser, séculos depois, o mundo
contemporâneo. A Europa medieval, relativamente estável e fechada, inicia um
processo de abertura e expansão comercial e marítima. A identidade das pessoas,
até então baseada no clã, no ofício e na propriedade fundiária, encontra
outras fontes de referência no nacionalismo e no cultivo da própria
individualidade. Uma mentalidade mais laica foi se desligando do sagrado e das
questões transcendentais para se ocupar de preocupações mais imediatistas e
materiais, centradas principalmente no homem.
E, embora as dúvidas metafísicas que ocupam o pensamento
humano desde a Antigüidade continuassem como objeto de reflexão, há crescente
interesse por um conhecimento mais pragmático do que meramente especulativo.
Diferentes visões do Renascimento
Segundo alguns historiadores, essas transformações, que se
processaram cada vez em ritmo mais acelerado a partir dessa época, deram
origem a uma mentalidade renovadora, repudiando o misticismo e o
conservadorismo próprios do feudalismo, por isso mesmo considerado por eles
como a Idade das Trevas e do obscurantismo. Esses pensadores avaliaram de forma
positiva as mudanças que abalaram primeiramente a Itália e depois os demais
países da Europa — responsáveis pelo desenvolvimento do comércio, da navegação
e do contato com outros povos, pelo crescimento urbano e pelo recrudescimento
da produção artística e literária. Por tudo isso e pela retomada de princípios
norteadores da cultura greco-romana, rejeitados, em parte, pelo pensamento
medieval, esse movimento recebeu o nome de Renascimento, sinônimo da
importância que passou a ser dada ao saber, à arte e à erudição.
Outros historiadores, entretanto, mais pessimistas, percebem
essa época como um período de grande turbulência social e política. Para eles,
é impossível não reconhecer como características marcantes do Renascimento a
falta de unidade política e religiosa, os conflitos entre as nações que se
formavam, as guerras intermináveis e as perseguições religiosas, desenvolvidas
no esforço de conservação de um mundo que agonizava. Consideram como sintomas
dessa conjuntura os exílios, as condenações, os longos processos políticos e
eclesiásticos, os grandes genocídios promovidos na América e o ressurgimento da
escravidão como instituição legal. Significativo também desses conflitos foi o
desenvolvimento de uma filosofia pessimista da história, pautada em uma angústia
escatológica na perspectiva da proximidade do fim do mundo.
De fato, um certo clima de fim de mundo perpassa a produção
artística do período, expresso na Divina comédia de Dante Alighieri, no juízo
Final de Michelangelo, pintado na Capela Sistina, em Roma, e em vários quadros
do artista flamengo Hieronymus Bosch. Um sentimento de insegurança e
instabilidade está presente na produção cultural dessa época de profunda
transição.
A retomada do espírito especulativo
Apesar dessas contradições - e talvez por causa delas - o
Renascimento representa uma nova postura do homem ocidental diante da natureza
e do conhecimento. Juntamente com a perda de hegemonia da Igreja como
instituição e o conseqüente aparecimento de novas doutrinas e seitas
conclamando seus seguidores a uma leitura interpretativa dos textos sagrados, o
homem renascentista redescobre a importância da dúvida e do pensamento
especulativo. O conhecimento deixa de ser encarado como uma revelação,
resultante da contemplação e da fé, para voltar a ser, como o fora para os
gregos e romanos, o resultado de uma bem conduzida atividade do pensamento.
Assim, filosofia, ciência é arte se voltaram para a
realidade concreta, para o mundo, numa ânsia por conhecê-lo, descrevê-lo,
analisá-lo, medi-lo, quer por meio de instrumentos e técnicas, quer por meio da
pena e do pincel.
"O visível é também inteligível", afirmou Leonardo
da Vinci, aludindo às possibilidades de conhecimento pelo pleno uso dos
sentidos e da mente.
Por outro lado, a vida terrena parece adquirir cada vez mais
importância e com ela a própria história, que passa a ser concebida de um
ponto de vista eminentemente humano. Estimulado pelo individualismo e liberto
dos valores que o prendiam irremediavelmente à família e ao clã, o homem assume
seu papel na história como agente dos acontecimentos. Assim, aos poucos, ele
rejeita as teorias que o apresentam como pecador e decaído, um ser em
permanente dívida para com Deus, para assumir, numa nova perspectiva humanista
e laica, a sua participação ativa na história.
A arte expressa de forma ímpar essas transformações:
Shakespeare, cujos personagens parecem ter engendrado as características do
homem moderno, evoca constantemente em suas peças as dificuldades humanas
diante de sentimentos contraditórios e da liberdade de ação. Também repletas de
grandiosidade são as imagens com que Michelangelo representou a criação do
mundo, acontecimento apaixonante que aproxima, de forma inovadora, Deus e o
homem.
Esse o homem novo do Renascimento: aquele que se liberta cia
tradição pela dúvida e confirma seu valor através dos resultados de seus
esforços; aquele que confia em suas experiências e em sua razão: o que confia
no novo. pois assume sua realização dentro da temporalidade.
É nesse ambiente propício de curiosidade, dúvida e
valorização humana que o pensamento científico adquire nova importância e, com
ele, o interesse pelo entendimento da vida social. O desenvolvimento das
cidades e do comércio, as viagens marítimas, o contato com outros povos desafiavam
os homens a pensarem a sua realidade próxima e a compararem diferentes
culturas. Descobertas de riquezas, de terras, de regiões alimentavam a
imaginação do homem renascentista, que passou a valorizar o "novo" e
a considerá-lo sinônimo de "maravilhoso". Estimuladas por ele, as
pessoas rompiam com o passado e buscavam novas explicações para um cenário
diferente que se descortinava e para o qual as antigas crenças não serviam
mais.
Esse o horizonte em que se situa o descobrimento e a
conquista do Novo Mundo, como se fora uma realização e uma fabulação da
travessia desvendando espaços e tempos.
"Com a invenção da América a cultura cio Ocidente
consegue, por fim, apropriar-se da totalidade da Terra como algo próprio... E a
hora em que o homem ocidental concebe a si próprio como senhor nato cio
cosmo."
Um novo pensamento social
Em um mundo cada vez mais laico e independente da tutela da
religião, o homem é levado a pensar e analisar a realidade que o cerca em toda
sua objetividade, e não como resultado da vontade ou da justiça divina. E,
assim como os pintores que se dedicam às minúcias das paisagens ou às medidas
proporcionais das figuras numa perspectiva geométrica, os filósofos também
passam a observar e a dissecar a realidade social.
O aparecimento de novas instituições políticas e sociais —
as nações, os estados, as legislações e os exércitos — levam os estudiosos a
repensar a vida social e a história, tornando evidente o papel da consciência,
da vontade, do discernimento e da intervenção humana nos rumos dos
acontecimentos.
Ao mesmo tempo, a emergência da burguesia comercial, com
novas aspirações e interesses, exigia transformações políticas e sociais. Para
dar espaço a elas, abandona-se a idéia de uma realidade social estática, de
origem divina, em favor da concepção de uma vida social dinâmica e em
permanente construção.
Nessa visão especulativa da vida social está o germe do
pensamento social moderno que vai se expressar na literatura, na pintura, na
filosofia e, em especial, na literatura utópica de Thomas Morus (A Utopia),
Tommaso Campaneila (A cidade do Só!) e Francis Bacon (Nova Atlântida).
As utopias
Como os gregos antigos, os filósofos renascentistas
refletiram sobre a sociedade por meio de textos nos quais desenvolviam o
modelo do que seria, aos seus olhos, uma sociedade perfeita. Assim como a
lendária Atlântida, reino imaginário referido por Platão nos diálogos de Timeu
e Crítias, Thomas Morus concebeu Utopia — uma ilha na qual os habitantes haviam
alcançado a paz, a concórdia e a justiça. Significativamente, o autor batiza
sua ilha de Utopia, nome que significa "nenhum lugar" — único espaço
onde parece ter um dia reinado a harmonia, o equilíbrio e a virtude.
Em Utopia todos vivem sob as mesmas condições de vida e são
responsáveis pelas mesmas tarefas e atividades, distribuídas entre eles por
rodízio. A igualdade entre as pessoas e os ideais de vida comunitária são
garantidos por uma monarquia constitucional que funciona da seguinte maneira:
cada grupo de trinta famílias escolhe seu representante para o Conselho, que
por sua vez elege o imperador para um mandato vitalício. Cada ato real é
acompanhado pelo Conselho, que consulta as famílias sempre que necessário.
Assim como os privilégios e as obrigações, a repartição de
alimentos também se dá de forma comunitária. Ninguém precisa pagar para obter
os bens de que necessita, pois há de tudo em profusão — a vida é simples, sem
luxo e todos trabalham.
Como obra típica do Renascimento, A Utopia, de Thomas Morus,
expressa tanto idéias emergentes como reminiscências feudais: apresenta os
mesmos ideais de vida moderada, igualitária e laboriosa praticados pelos
monastérios pré-renascentistas, assim como defende, em termos políticos, a
monarquia absoluta. Mas já propõe ideais modernos que reconhecem a
representatividade social como única fonte de legitimidade do poder e a
necessária sujeição do soberano às regras que o consagraram. E, refletindo
também outros anseios de sua época, Thomas Morus considera possível a
realização do mundo ideal por ele proposto graças ao planejamento e intervenção
de um rei — Utopos, o fundador da Utopia — cujo valor principal é a sabedoria.
Utopia
Utopia vem dos termos gregos ou (não) e topos (lugar).
Significaria literalmente "nenhum lugar". Corresponde na história do
conhecimento a essa evocação, por uma aspiração, sonho ou desejo manifesto, de
um estado de perfeição sempre imaginário. Na medida, entretanto, em que a
utopia enfoca um estado de perfeição, ela realiza, por oposição, um exercício
de análise, crítica e denúncia da sociedade vigente. O estado de perfeição
ensejado na utopia é necessariamente aquele pelo qual se tornam evidentes as
imperfeições da realidade em que se vive.
Mas, apesar de seu caráter de evasão da realidade, a utopia
revela uma apurada crítica à ordem social, podendo inclusive se transformar em
autêntica força revolucionária, como indicam os grandes movimentos messiânicos
vividos pela humanidade, ou seja, aqueles movimentos que têm por meta a redução
da humanidade ou a salvação do mundo.
Thomas Morus
(1478-1535)
Nasceu em Londres. Foi pensador, estadista, advogado e
membro da Câmara dos Comuns. Como bom humanista, desenvolveu estudos sobre o
grego antigo. Em 1518, foi nomeado membro do Conselho Secreto de Henrique VIII
e chegou em 1529 a ocupar o mais alto cargo do reino. Opôs-se à anulação do
casamento cie Henrique VIII, recusando-se a jurar fidelidade à Igreja Anglicana
fundada pelo rei, em parte por ser católico e em parte por ser contrário aos
desmandos da autoridade real. Foi preso, condenado e executado. Em 1935 foi
canonizado pela Igreja Católica e sua festa é celebrada em 6 de julho, dia de
sua morte. Sua grande obra é A Utopia.
Cidade do Sol e Nova Atlântida seguem o mesmo modelo pelo
qual denunciam os males da sociedade — a rivalidade entreos homens, a injustiça
e as desigualdades — que, embora superados apenas pelo mito, já se apresentam
como temas da reflexão dos humanistas e ideais de vida a serem perseguidos
pelos homens.
Seriam essas obras sociológicas? Certamente são diferentes
dos estudos sociológicos que se desenvolveram mais tarde, mas já expressam as
reflexões dos filósofos diante da vida social e dos problemas de sua época — as
desigualdades sociais e o abuso de poder dos soberanos. Anal isar a sociedade
em suas contradições e visualizar uma maneira de resolvê-las, acreditar que da
organização das relações políticas, econômicas e sociais derivam a felicidade
do homem e seu bem-estar é, seguramente, o germe do pensamento
sociológico.
Maquiavei:
O criador da ciência política
Nicolau Maquiavei, pensador florentino, escreveu O príncipe,
texto dedicado a Lou-renço de Mediei (1449-1 492), governador de Florença e
personagem importante dessa época, protetor das artes e das letras, mas,
também, um ditador. Nessa obra, Maquiavei se propõe a analisar o poder e as
condições pelas quais um monarca absoluto — o príncipe — é capaz de
conquistar, reinar e manter seu poder.
Como Thomas Morus, Maquiavei acredita que a paz social
depende das características pessoais do príncipe — suas virtudes —, das circunstâncias
históricas e de fatos que ocorrem independentemente de sua vontade — as
oportunidades. Acredita também que do bom exercício da vida política resulta a
felicidade do homem e da sociedade. Mas, sendo mais realista do que seus
contemporâneos utopistas, Maquiavei faz de O príncipe um manual de ação
política, cujo ideal é a conquista e a manutenção do poder. Disserta a respeito
das relações que o monarca deve manter com a nobreza, o clero, o povo e seu
ministério. Mostra como deve agir o soberano para alcançar e preservar o
poder, como manipular a vontade popular e usufruir seus poderes e alianças. Faz
uma análise clara das bases em que se assenta o poder político: como assegurar
exércitos fiéis e corajosos, como castigar os inimigos, como recompensar os
aliados, como destruir, na memória do povo, a imagem dos antigos líderes.
Nicolau Maquiavei
(1469-1527)
Nasceu em Florença, mas fez sua carreira diplomática em
diversos países da Europa. De 1 502 a 1 512 esteve a serviço de Soderini,
presidente perpétuo de Florença. Ajudava-o nas decisões políticas, escrevia-lhe
discursos e reorganizou o exército florentino. Foi exilado e afastado da vida
pública quando Soderini foi destronado por Lourenço de Mediei. A partir de
então, limitou-se a ensinar e a escrever sobre a arte de governar e guerrear.
É considerado o fundador da ciência política e, segundo alguns, nesse campo
jamais foi superado. Suas principais obras são: O príncipe e Discursos sobre a
primeira década de Ti to Lívio.
A visão laica da sociedade e do poder
Em relação ao desenvolvimento do pensamento sociológico, a
obra de Maquiavel estava à frente de A Utopia de Thomas Morus na medida em que
o autor tinha por objetivo conhecer a realidade tal como se apresentava, em
vez de procurar imaginar apenas como ela deveria ser. Existe em O príncipe uma
observação arguta dos acontecimentos e das relações humanas, além de uma visão
menos idealizada do ser humano.
Mas é pelas obras de Thomas Morus e de Maquiavel que
percebemos como as relações sociais passam a constituir objeto de estudo dotado
de atributos próprios e a paz social deixa de ser, como no passado,
conseqüência do acaso, da vontade divina ou da obediência dos homens às
escrituras. A sociedade já aparece, nessas obras, como resultado das condições
econômicas e políticas e não da providência.
Além disso, esses filósofos expressam os novos valores da
época ao colocar os destinos da sociedade e de sua boa organização nas mãos de
um governante que se distingue por características individuais. A monarquia
proposta no Renascimento não se assenta na legitimidade do sangue ou da
linhagem, na herança ou na tradição, mas na capacidade pessoal do soberano e
em sua sabedoria.
Também a história como conhecimento objetivo dos fatos passa
a íer um papel relevante no desenvolvimento dessa reflexão, como fonte de
informação e experiência. Maquiavel se vale de acontecimentos e de líderes do
passado como argumentos na defesa de suas idéias, demonstrando reconhecer que
a vida social depende de leis que regulam o comportamento social em diferentes
épocas e lugares. Os fatos históricos devem ser analisados e servir como
exemplos.
Assim, nas obras referidas há importantes elementos que
caracterizam o pensamento sociológico: a crença na ação humana e em seu poder
decisivo sobre a história, bem como a busca por regularidades capazes de
fundamentar o estudo objetivo da sociedade. Por outro lado, esses textos já
manifestam uma concepção emergente de poder — a monarquia constitucional na
qual se realiza a aspirada aliança entre a burguesia e os reis que permitiu, a
partir de então, o surgimento dos estados nacionais.
A Ilustração e a sociedade contratua
Uma nova etapa no pensamento burguês
O Renascimento foi o momento de transição da sociedade
medieval para o capitalismo moderno — sistema econômico focado na produção e na
troca, na expansão comercial, na circulação crescente de mercadorias e de bens
materiais. Rompia-se a ordem feudal estamental e fundiária e emergia uma
sociedade individualista e financista voltada para o desenvolvimento comercial
e o lucro. Novos valores, sentimentos e atitudes passaram a reger a vida e o
comportamento social.
Diferentemente do homem medieval, espiritualista, contido e
gregário, o homem moderno é estimulado a amar a vida, a buscar a satisfação de
suas necessidades de forma individual e a cultivar sua subjetividade feita de
sentimentos e de pontos de vista pessoais.
As cidades ganharam vida, atraindo pessoas de diferentes
lugares dispostas a conquistar um espaço no mundo, a competir e a enriquecer.
Seus anseios eram direcionados para a existência terrena e as conquistas
materiais, ficando em segundo plano as preocupações com a vida após a morte e
as verdades transcendentais. E, à medida que a Europa avançava para a
Modernidade, essa mentalidade nova se afirmava e se difundia.
No campo econômico, uma atitude expansionista toma conta de
todas as atividades e o lucro se torna o objetivo principal de qualquer
atividade. No entanto, não se tratava do lucro praticado desde as mais remotas
trocas comerciais, uma forma de remuneração do comerciante e do produtor pelo
seu trabalho — uma quantia cuja monta não deveria exceder nunca os limites
estreitos capazes de assegurar o sustento dos agentes e de suas famílias. Um
lucro que, ultrapassando essa fronteira, seria considerado antiético pela
sociedade e pecaminoso pela Igreja.
Com o capitalismo, as atividades econômicas se libertam
desses limites e o lucro se torna a finalidade primeira da atividade econômica,
responsável pela acumulação de riqueza e pela prosperidade. Assim, enquanto um
comerciante na Antigüidade calculava seu ganho em função daquilo que
necessitava para viver e para repor o que fora gasto na prática do comércio —
embarcações e escravos —, o negociante capitalista, livre de qualquer limite,
estabelecia seu preço procurando estimar o valor máximo que os compradores se
mostravam dispostos a pagar por seus produtos.
Essas novas condições de realização do comércio fizeram dele
(com que ele se tornasse) uma das principais atividades econômicas no
Renascimento, para a qual se organizaram viagens intercontinentais e se fizeram
guerras nas quais eram disputadas as rotas comerciais, as fontes de produtos e
matérias-primas e a clientela. As grandes navegações ocorreram nesse cenário.
O cientificismo
Essa valorização das trocas comerciais e as novas
possibilidades de lucro que se abriam ao comerciante burguês acabaram por
repercutir na produção, estimulando-a. Tornava-se urgente produzir mais e em
condições capazes de responder à demanda que se tornava cada vez mais
insistente. Racionalidade e planejamento começam a ser exigidos dos produtores,
bem como o desenvolvimento de tecnologia para a produção em larga escala. O
estímulo à invenção de máquinas que potencializassem a produção, com a promessa
de prêmios em dinheiro, provocou uma verdadeira corrida por engenhos
tecnológicos que acelerassem a produção e barateassem os produtos.
Nessas condições, incentiva-se a pesquisa científica e se
disseminam atitudes de planejamento e racionalidade que, aos poucos,
inserem-se na produção e no restante da vida cotidiana. Busca-se conhecer os
mecanismos que regulam o mundo circundante, procurando o entendimento da vida e
da natureza. O interesse pela produção agrícola manifestava-se no exame
sistemático e controlado das plantas e dos animais, enquanto a observação e a
classificação se transformam em método do conhecimento, perdendo sua atitude
ingênua e sua espontaneidade. Multiplicam-se os jardins botânicos, os
zoológicos e as coleções de espécimes, exibindo um novo tipo de curiosidade e a
preocupação com procedimentos adequados de estudo e observação. O conhecimento
desprende-se também do visível para apreender realidades interiores e
invisíveis, só discerníveis pelo uso adequado da investigação racional.
Aumentam as indagações acerca do movimento mecânico e da luz.
Museus ou "gabinetes de curiosidades" proliferaram
nos séculos XVI. XVII e XVIII. Alguns deles eram famosos em toda a Europa: não
só os gabinetes dos príncipes (Rodolfo II. em Praga, por exemplo, ou Luis XIV.
em Paris), mas também de indivíduos particulares, como o clérigo Manfreclo Settala.
em Milão, o professor Ulisse Aldrovundi. em Bolonha, o boticário Basilius
Besler. em Xuremberg... Nada menos que 723 coleções eram conhecidas no século
XVII só em Paris.
A sociedade inteligível
E, sobre a base do individualismo e da laicidade estimulados
no Renascimento, essa curiosidade científica se dirige, de forma inusitada,
para a compreensão da sociedade, que passa a ser vista como uma realidade
diferente e própria, sobre a qual interferem os homens como agentes. Da ação
consciente e interessada sobre a sociedade resultam diversos modelos de
organização política — a República, a Monarquia — que devem ser defendidos e
implementados como formas possíveis de intervenção e não como resultado do acaso
ou do destino da humanidade. Sua validade deve ser buscada na argumentação
coerente e racional que tem por objetivo a realização do homem na comunidade e
o exercício de sua liberdade. Conseguia-se, assim, vislumbrar, nesses
primórdios do pensamento sociológico, a oposição entre indivíduo e sociedade,
entre liberdade e controle social.
Os anos da metade do século XXII foram significativos pelo
uso de panfletos e jornais em que monarquistas e parlamentaristas expressavam
seus respectivos pontos de vista. Entre 1640 e 1663. um livreiro. Georges
Thomason, equivalente inglês cio parisiense LTstoile. coletou perto de quinze
mil panfletos e mais de sete mil jornais, coleção conservada na Biblioteca
Britânica e conhecida como Thomason Tratos. A deflagração cia guerra civil
também coincidiu com o chamado "surgimento do livro cie notícias
inglês" em 1641. Mercurius Aulicus foi um jornal importante para um dos
lados, e Mercurius Britannicus, o equivalente para o outro lado, cada qual
produzindo sua versão dos eventos...
A Ilustração, movimento filosófico que sucedeu o
Renascimento, baseava-se na firme convicção da razão como fonte de
conhecimento, na crítica a toda adesão obscurantista e a toda crença sem
fundamentos racionais, assim como na incessante busca pela realização humana.
Em relação à vida social, os filósofos da Ilustração procuraram entender a
sociedade como um organismo vivo, ou seja, composto de partes interdependentes,
cada uma delas com suas características e necessidades — a agricultura, a indústria,
a cidade, o campo. Desse exercício de discernimento resultou também a
compreensão de diferentes instâncias da vida social — as relações políticas,
jurídicas e sociais.
Das relações entre partes e instâncias constituintes depende
o funcionamento do todo, no qual se fundamenta o conceito de nação - um
conjunto organizado de relações intersocietárias. O nacionalismo emergente do
Renascimento, identificado ainda com a pessoa do monarca e associado ao
sentimento de fidelidade e sujeição, dá lugar à noção de uma coletividade
organizada e contratual, representada por sistemas legais, políticos e
administrativos convenientes. O poder surge como uma construção lógica e
jurídica, independente de quem o ocupa, de forma temporária e representativa.
Percebe-se nos filósofos da Ilustração o aprofundamento no
estudo das relações sociais, o desenvolvimento de análises abstratas da
realidade e a capacidade de criar modelos explicativos para o funcionamento da
vida social. Todo esse esforço filosófico se expressava tanto no princípio de
representatividade política como na construção de teorias para explicar a
origem da riqueza e do valor das mercadorias. Conceitos como o de Valor e
Estado exigiram um esforço teórico importante: identificar as relações
fundamentais para a compreensão de um objeto, apreender aquilo que é permanente
nessas relações em diferentes épocas e lugares e, assim, construir modelos
abstratos que expliquem seu funcionamento. E, finalmente, projetar mudanças
baseadas na ação humana organizada pela razão, pela vontade e pela expectativa
de uma vida mais satisfatória.
Em busca da razão prática
O Renascimento correspondeu a um período de sistematização
do pensamento burguês, caracterizado por uma mentalidade laica que valorizava
o gosto pela vida e o racionalismo, atribuindo ao indivíduo valores pessoais
que não provinham da sua origem, propriedade ou casta. E, embora ainda
expressasse certa transcendental idade religiosa, o Renascimento exaltava a
natureza e os benefícios da vida terrena, fossem eles o êxtase religioso ou o
simples prazer dos sentidos.
Já nos séculos XVII e XVIII, entretanto, o fortalecimento de
um poderoso mercado internacional, praticamente de âmbito mundial, o avanço na
produção massiva de produtos (início da Revolução Industrial na Inglaterra, no
século XVIII) e a consolidação do lucro como uma atividade desejável e justa,
foram fatores que estimularam a intelectualidade burguesa a avançar para a
elaboração de um pensamento próprio. Assim, o conhecimento se transformava não
só numa exaltação da vida e dos feitos de seus heróis, mas também num processo
que se revelava útil e aplicável à vida prática. Afinal, o desenvolvimento
industrial se anunciava em toda sua potencialidade e os empreendimentos,
quando bem dirigidos, prometiam lucros miraculosos. Era preciso preparar as
pessoas para isso e planejar a produção em bases confiáveis e experimentais.
A sociedade apresentava necessidades urgentes que desafiavam
os cientistas. De um lado, melhores condições de vida; prolongamento da
existência humana e uma predisposição das pessoas para usufruírem, sempre que
possível, tudo o que se produzisse de bom e de bens. De outro, o
desenvolvimento tecnológico capaz de baratear os produtos, aumentando a
produtividade e aprimorando a produção e a armazenagem de mercadorias, o
transporte e a distribuição de pessoas e bens. Tudo isso resultaria na formação
de um grande contingente de trabalhadores e de consumidores, em novos hábitos
de vida e de relacionamento, no uso de novas tecnologias e produtos. A
sociedade avançava para a indústria e a cultura de massa.
Mas planejar e projetar o futuro exigia a concepção de um
tempo e de um espaço determinados, confirmando o nascente conceito de estado
nacional — um território soberano sobre o qual a burguesia reinava, imprimindo
uma política que privilegiava o desenvolvimento econômico e as necessidades do
mercado. A nação deveria se orientar por uma política que favorecesse a
prosperidade e a acumulação de riqueza e que tivesse no indivíduo sua mola-mestra.
Um indivíduo liberto das amarras do passado — da religião, da fé, da culpa e
do pecado, das oficinas de ofício, dos soberanos e dos sacerdotes —, mas pleno
de desejos e expectativas de realização pessoal e de liberdade para agir,
movimentar-se, consumir, gerir negócios e lucrar.
Novos valores guiando a vida social para sua modernização,
mais pesquisas e a exploração de novos campos do saber, avanços
técnicos,melhoria nas condições de vida, tudo isso somado produziu um clima
muito otimista em relação ao futuro do homem, o que levou a esse surto de
ideias, conhecido pelo nome de "Ilustração". Um movimento que
propunha uma atitude curiosa e livre que se estendia tanto à elaboração teórica
como à sistemática observação empírica. Que acreditava ser o conhecimento fonte
de saber, de realização e de satisfação para a humanidade. Que acreditava na
evolução incessante do ser humano em direção a etapas cada vez mais avançadas
de sua existência como espécie.
A filosofia social dos séculos XVII e XVIII
Todas essas mudanças que tiveram origem no Renascimento,
envolvendo o destino das nações, o desenvolvimento das comunicações e dos
transportes, a ciência e o conhecimento, tiveram, inicialmente, mais êxito com
governos absolutistas e centralizados que haviam selado a aliança entre a
antiga nobreza feudal e a emergente burguesia comercial. Porém, conquistadas as
primeiras vitórias dessa revolução econômica e política, em que um poder
central garantira a emergência e a organização dessa nova ordem social, os
estados absolutistas se tornavam um empecilho às exigências de liberdade e
expansão do mercado. A burguesia ansiava por se libertar das amarras
estabelecidas pelas monarquias absolutas que atravancavam a livre iniciativa,
a liberdade de comércio e a concorrência entre salários, preços e produtos.
A burguesia já se sentia suficientemente forte e confiante
em seus propósitos para dispensar o absolutismo, regime que havia permitido a
consolidação do capitalismo. Fortalecida, ela propunha agora formas de governo
baseadas na legitimidade popular, dentre as quais surgia preponderante a idéia
de República. Inspirada por ela, ergueram-se bandeiras conclamando o povo a
aderir à defesa da igualdade jurídica, da democracia, ainda que restrita, e da
liberdade de manifestação política.
O pensamento da Ilustração defendia a idéia da economia
regida por leis naturais de oferta e procura que tendiam a estabelecer, pela
livre concorrência, de maneira mais eficiente do que os decretos reais, o
melhor preço, o melhor produto e o melhor contrato. Fiéis a essa proposta
havia economistas que apostavam na indústria e os que defendiam a agricultura
como a fonte de toda riqueza, opondo-se ao uso ocioso que a nobreza fazia de
suas propriedades agrárias — eram os chamados fisiocratas.
Tendo por base a idéia de que a sociedade era regida por
leis naturais, semelhantes em seu determinismo àquelas que regem a natureza e a
relação entre as espécies, os filósofos da Ilustração rejeitavam toda forma de
controle político que interviesse sobre essa racionalidade natural e física. O
controle das relações humanas, especialmente as produtivas, deveria resultar da
livre ação dessas leis, cuja lógica era objetivo da ciência descobrir.
Dentre os defensores da racionalidade como base da organização
da vida e do pensamento humano destacaram-se os franceses René Descartes e
Denis Diderot. O primeiro deles, por sintetizar essa fé inabalável na razão na
frase "penso, logo existo", acabou por emprestar seu nome — em
latim, Cartesius — a esse princípio que ficou conhecido como "racionalismo
cartesiano".
Assim, a idéia de uma racionalidade natural perpassava a
compreensão do homem, de sua vida em sociedade e de suas atividades
produtivas. O princípio de liberdade admitia que, livre de coibições, obstáculos
e jugos, o homem seria capaz de exercer sua soberania, escolhendo bem entre
fins e objetivos propostos. As leis naturais regulariam as relações econômicas
e as sociedades seriam construídas com base na vontade livre e nas relações
contratuais firmadas entre os homens.
Também francês, jean-Jacques Rousseau foi um dos mais
ardorosos defensores dessa idéia e um dos mais ferrenhos críticos da sociedade
de seu tempo. Em sua obra Contrato social, afirmava que a base da vida social
estava no interesse comum e no consentimento unânime dos homens em renunciar às
suas vontades particulares em favor da coletividade.
Mais pessimista que outros filósofos da sua época, Rousseau
rejeitava a idéia de evolução e, buscando desvendar a origem das
desigualdades sociais, procurou reconstruir a história da humanidade desde o
igualitarismo primitivo até a sociedade complexa e diferenciada. Desse modo,
identificou no aparecimento da propriedade privada a fonte de toda
diferenciação e injustiça social. Tornou-se, assim, partidário de uma sociedade
que defendesse princípios igualitários e cuja organização política tivesse uma
base livre e contratual, principais lemas da Revolução Francesa que se
avizinhava.
Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778)
Nascido em Genebra, filho de burgueses protestantes,
Rousseau teve uma vida errante que o levou continuamente da Suíça à França, à
Itália e à Inglaterra. Foi aprendiz de gravador, secretário de nobres ilustres
e até seminarista. Dedicou-se também ao desenho, à pintura e à música. Na
França, foi contemporâneo de filósofos da Ilustração, como Diderot. Suas
principais obras foram Emílio, Contrato social, Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens e Discurso sobre as ciências e as artes.
Foi alvo de críticas severas e perseguições, mas na época da Revolução Francesa
suas idéias foram intensamente divulgadas.
John Locke, pensador inglês, também defendeu a idéia da
sociedade resultante da ivre associação entre indivíduos dotados de razão e
vontade que, como para Rousseau, teria uma base contratual. Esta
regularia,entre outras coisas, as formas de poder e as garantias de liberdade
individual. Mas, diferentemente do pensador francês, Locke reconhecia, entre
os direitos individuais, o respeito à propriedade. Recomendava também que tais
princípios, direitos e liberdades estivessem expressos e garantidos por uma
constituição.
Esses filósofos — por sua preocupação histórica e por
encararem a sociedade como uma matéria em desenvolvimento, de origem natural e
não-divina — davam início a uma forma de pensar que levaria à descoberta das
bases materiais das relações sociais. Percebe-se claramente que se
conscientizavam da diferença entre indivíduo e coletividade, que já
identificavam a existência de regras que dirigiam a vida coletiva, semelhantes
às leis naturais que regiam o surgimento, desenvolvimento e relações entre
espécies. Mas, presos ainda ao princípio da individualidade, esses filósofos
entendiam a vida coletiva como a fusão de sujeitos, possibilitada pela
manifestação explícita das suas vontades.
John Locke
(1632-1704)
Inglês de Wrington, formado em Oxford, ingressou na carreira
diplomática. Durante o período em que residiu na França, tomou contato com o
método cartesiano. Sofreu perseguições políticas na Inglaterra que o obrigaram
a se refugiar na Holanda. Em sua obra Dois tratados sobre o governo civil,
defende o liberalismo político, os direitos naturais do homem e da propriedade
privada. Suas idéias políticas tiveram grande repercussão, assim como sua
contribuição ao problema do conhecimento, expressa na obra Ensaio sobre o
entendimento humano, na qual repudia a proposição cartesiana de que o homem
possua idéias inatas e defende o conhecimento como resultado da experiência, da
percepção e da sensibilidade. Publicou, ainda, Epístola sobre a tolerância,
Alguns pensamentos sobre educação e Racionalidade do cristianismo.
Adam Smith: o nascimento da ciência econômica
Foi Adam Smith, considerado fundador da ciência econômica,
quem demonstrou que a análise científica podia ir além do que era
expressamente manifesto nas vontades individuais. Na busca por entender a
origem da riqueza das nações, Smith identificou no trabalho, ou seja, na
produtividade, a grande fonte de produção de valor. Não somente a agricultura,
como queriam uns, nem a indústria, como queriam outros, mas principalmente o
trabalho — capaz de transformar matéria bruta em mercadoria— era responsável
pela riqueza das nações. Veremos adiante como essa idéia será retomada e
reelaborada no século XIX por Karl Marx.
Nesse esforço por entender as relações econômicas, Adam
Smith pensava a sociedade não como um conjunto abstrato de indivíduos dotados
de vontade e liberdade, tal como haviam feito Rousseau e Locke, mas como um
conjunto de seres cujo comportamento obedece a regras diferentes das que regem
a ação individual. Sensível à verdadeira natureza da vida social, Adam Smith
percebia que a coletividade era muito mais do que a soma dos indivíduos que a
compõem. A Revolução Industrial estava em pleno andamento e seus frutos se
anunciavam.
Adam Smith
(1723-1790)
Nasceu na Escócia. Foi professor da Universidade de Glasgow
e é considerado o fundador da ciência econômica. O seu principal estudo foi a
investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações, que originou a
sua famosa obra A riqueza das nações. Desenvolveu idéias a respeito da divisão
do trabalho, da função da moeda e da ação dos bancos na economia. Continuou
seus estudos no livro Teoria dos sentimentos morais, no qual afirma que a vida
social humana está fundada em sentimentos de benevolência e simpatia. Foi o
grande defensor do liberaljsmo econômico.
Legitimidade e liberalismo
As teorias sociais da Ilustração no século XVIII expressam o
despertar do pensar científico sobre a sociedade. Tiveram o poder de orientar
a ação política e lançar as bases do que viria a ser o Estado capitalista,
constitucional e democrático, desenvolvido no século XIX. Incentivaram
diferentes movimentos políticos pela legitimação do poder, fosse de caráter
monárquico, como na Revolução Gloriosa da Inglaterra, fosse de caráter
republicano, como na Revolução Francesa, ou ainda do tipo ditatorial, como no
império napoleônico. Tão importante quanto seu valor como forma de entendimento
da vida social foi sua repercussão prática na vida política da sociedade.
A filosofia social desse período teve, em relação à
renascentista, a vantagem de não constituir apenas uma crítica social baseada
no que a sociedade poderia idealmente vir a ser, mas de criar projetos
concretos de realização política para a sociedade burguesa emergente.
A idéia de Estado como uma entidade cuja legitimidade se
baseia na pretensa representatividade da sociedade é um avanço em relação à
idéia de monarquia absoluta. Não se trata mais de uma pessoa que governa por
direito de herança e sangue, mas de uma instituição abstrata que administra um
território a partir de pactos estabelecidos pela coletividade. A filosofia
social da Ilustração concebia também a idéia de nação como o gerenciamento e
administração de leis, riquezas e poder. Nesse processo pressupõe-se a noção de
conflito de interesses e o confronto social.
As idéias de Locke e de Montesquieu, outro importante
pensador da Ilustração, foram a base da Constituição norte-americana de 1 787.
Ambos pregaram a divisão do Estado em três poderes: o legislativo, incumbido
da elaboração e da discussão das leis; o executivo, encarregado de sua execução
e da proteção dos direitos naturais à liberdade, à igualdade e à propriedade;
e o judiciário, responsável pela fiscalização à observância das leis que
asseguravam os direitos individuais e seus limites. Essa divisão estabelecia a
distribuição das tarefas governamentais e a mútua fiscalização entre os
poderes do Estado. Locke defendia, ainda, a idéia de que a origem da autoridade
não se encontra nos privilégios da tradição, da herança ou da concessão
divina, mas no contrato expresso pela livre manifestação das vontades
individuais.
A legislação norte-americana, instituindo a divisão do
Estado nos três poderes e estabelecendo mecanismos para garantir a eleição
legítima dos governantes e os direitos do cidadão, pôs em prática os ideais
políticos liberais e democráticos modernos. Assim, os Estados Unidos da
América constituíram a primeira república liberal-democrática burguesa.
A crise das explicações religiosas e o triunfo da ciência
O milagre da ciência
A filosofia da Ilustração preparou o terreno para o
surgimento das ciências sociais no século XIX, lançando as bases para a
sistematização do pensamento científico e espalhando otimismo em relação a
ele. Os efeitos de novos inventos, como o pára-raios e as vacinas, o
desenvolvimento da mecânica, da química e da farmácia, amplamente verificáveis,
pareciam coroar de êxitos as atividades científicas. Sem se dar conta das
nefastas conseqüências que a Revolução Industrial do século XVIII traria para
o mundo tradicional agrário e manufatureiro, os homens da época se mostraram
otimistas em relação às vitoriosas conquistas do conhecimento humano e em sua
capacidade de controlar as forças'da natureza.
As idéias de progresso, racionalismo e cientificismo
exerceram todo um encanto sobre a mentalidade da época — a vida parecia
submeter-se aos ditames do homem esclarecido. Preparava-se o caminho para o
amplo progresso científico que aflorou no final do século XIX.
O número de descobertas e inventos se multiplica, de modo
que é impossível acompanhá-lo. Lembrem-se apenas de algumas coisas, por sua
importância ou curiosidade. Aperfeiçoando os relógios, no início do século XVI
inventa-se o relógio portátil, de tanta utilidade, pois os anteriores eram em
geral grandes e de difícil manobra... outro aparelho que ocupou atenções e deu
muito trabalho foi a máquina têxtil. A roca. bem conhecida, obrigava a fiar e
depois a enrolar os fios em uma bobina. Um aperfeiçoamento permite realizar ao
mesmo tempo as duas tarefas.
Se esse pensamento racional e científico parecia válido para
explicar a natureza, intervir sobre ela e transformá-la, ele poderia também
explicar a sociedade entendida, então, como parte da natureza. Assim, por
associação, a sociedade poderia também ser conhecida e transformada,
submetendo-se ao domínio cio conhecimento humano.
As questões de método
O filósofo da Ilustração preocupou-se não só com o
conhecimento da natureza como também com o desenvolvimento do método mais
adequado para esse fim. Desse interesse derivaram diferentes modelos de
pesquisa e de maneiras de se fazer ciência. O primeiro foi a indução — método
que concebia o conhecimento como resultado da experimentação contínua e do
aprofundamento da manipulação empírica, defendido por Bacon desde o alvorecer
do Renascimento. O segundo, que teve em Descartes seu mais ardoroso
representante, foi o método dedutivo, que propunha uma forma de conhecimento
baseado no encacleamento lógico de hipóteses elaboradas a partir da razão.
A ciência se fundava, portanto, como um conjunto de idéias
que diziam respeito à natureza dos fatos e aos métodos para compreendê-los. Por
isso, as primeiras questões que os sociólogos do século XIX tentam responder
são relativas à identificação e definição dos fatos sociais e ao método mais
apropriado de investigação. Tanto o método indutivo de Bacon como o dedutivo de
Descartes serão traduzidos em procedimentos válidos para as pesquisas sobre a
natureza da sociedade.
O anticlericalismo
De especial importância para o desenvolvimento científico e
uma postura especulativa diante da natureza e da sociedade foi o
anticlericalismo, professado por inúmeros filósofos dessa época, dentre os
quais se destacava o francês Voltaire. Ferrenho questionador da religião e da
Igreja Católica, chegou a mover ações judiciais para revisão de antigos
processos de inquisição. Conseguiu comprovar a injustiça de alguns veredictos
eclesiais e até obteve indenizações para as famílias dos condenados.
Na baixa Idade Média, onde de fato a Igreja era antes de
tudo um amestramento. caçavam-se por toda parte os mais belos exemplares das
"bestas loiras". "Melhoravam-se". por exemplo, os nobres
alemães. Mas com o que se parecia em seguida um tal alemão
"melhorado". scduxido para o interior do clausuro? Com uma
caricatura do homem, com um aborto. Ele tinha se tornado um
"pecador", ele estava em uma jaula, tinham-no encarcerado entre
puros conceitos apavorantes... Aí jazia ele. doente, miserável, malévolo para
consigo mesmo; cheio de ódio contra os impulsos da vida. cheio de suspeita
contra tudo que ainda era forte e venturoso. Resumindo. um
"cristão"...
Assim a Igreja foi questionada como fonte de poder secular,
político e econômico, na medida em que se imiscuía em questões civis e de
Estado. Tal questionamento levou à descrença na doutrina e na infalibilidade
eclesiásticas, bem como ao repúdio da secular atuação do clero.
Esse processo, denominado por alguns historiadores
"laicização da sociedade", por outros, "descristianizacão",
atingiu seu apogeu no século XIX, quando se desenvolveu o materialismo e
quando a própria religião se viu transformada em objeto de estudo pelos
cientistas sociais.
Francis Bacon
(1561-1626)
Inglês, nascido de família de intelectuais, tornou-se
jurista e chanceler. Em seus livros busca mostrar que enquanto a filosofia
estéril se perde em devaneios, as técnicas avançam sob domínio do método
experimental.
François Marie Arouet
(1694-1778)
Francês, filho de um burguês com uma aristocrata, demonstrou
pendores para a literatura já em tenra idade. Criado por jesuítas, acaba por
conviver com intelectuais e artistas e desenvolve uma atitude cé-tica diante da
vida. Acaba preso na Bastilha quando assume o pseudônimo de Voltaire. Exilado,
passa a viver na Inglaterra, mas retorna a Paris, onde morre em idade avançada.
A Igreja como objeto de pesquisa
A existência da Igreja como instituição social foi discutida
por alguns pensadores e sociólogos do século XIX. Émile Durkheim a considerava
um meio de integrar os homens em torno de idéias comuns. Karl Marx a julgava
responsável por uma falsa imagem dos problemas humanos, ligada à acomodação e à
submissão pregadas por sua doutrina.
Defendida por uns, repudiada por outros, a Igreja perdia, de
qualquer maneira, o importante papel de explicar o mundo aos homens, passando,
ao contrário, a ser explicada por eles. A religião começa a ser encarada como
um dos aspectos da cultura humana, uma instituição como outras, criada pelos
homens com finalidades práticas, muitas delas mais voltadas aos interesse terrenos
e materiais do que à vida espiritual. Assim, a Igreja e sua doutrina sofreram
um processo de dessacralização, em que se eliminou muito de sua
"aura" de transcendentalismo. Todas as religiões — em especial o
catolicismo — passavam por análise crítica, que as julgava positiva ou
negativamente dependendo de sua inserção na vida concreta e material dos
homens, como promotora de valores sociais importantes para a orientação da
conduta humana. Na filosofia, grandes pensadores sistematizaram o pensamento
laico e anticlerical. Feuerbach, filósofo alemão, sustentava que não era o
homem obra divina, mas, ao contrário, fora Deus inventado pelo homem, à sua
imagem e semelhança. Nietzsche chega a anunciar a morte de Deus e a necessidade
de o homem assumir a plena responsabilidade sobre sua existência no mundo.
Ludwig Feuerbach
(1804-1872)
Filósofo natural da Baviera, dedicou-se a estudar a
religião de um ponto de vista humanista e antropológico que privilegiava a
necessidade humana do pensamento religioso e mágico.
Friedrich Nietzsche
(1844-1900)
Filósofo alemão, estudioso da civilizaç grega, criticou o
cristianismo e foi deténs da cultura germânica. Escreveu OAnticris no qual
afirmava ser o cristianismo uma i ligião de escravos, responsável pela dec
dência do Império Romano.
Esse olhar laico e especulativo sobre a doutrina religiosa
impulsionou o desenvolvimento das ciências humanas, em particular das ciências
sociais, na medida em que a sociedade deixou de ser vista como criação divina e
que as dificuldades humanas deixaram de ser pensadas como castigo. Para o
pensamento cientificista do século XIX, a vida humana e terrena adquire
importância e um homem preocupado com seu bem-estar e sua realização pessoal
passa a indagar sobre as razões de ser de seus conflitos e até mesmo sobre a
origem paga das crenças religiosas.
A sacralização da ciência
A sociologia se desenvolveu no século XIX, quando a
racionalidade das ciências naturais e de seu método haviam obtido o
reconhecimento necessário para substituir a religião na explicação da origem,
desenvolvimento e finalidade do mundo.
Nesse momento, a ciência, com a possibilidade de desvendar
as leis naturais do mundo físico e social, por meio de procedimentos adequados
e controlados, havia conquistado parte da sacralidade que antes pertencera às
explicações religiosas: a de apontar aos homens o caminho em direção à
verdade.
A ciência já não parecia mais uma forma particular de saber,
mas a única capaz de explicar a vida, abolir e suplantar as crenças religiosas
e até mesmo as discussões éticas. Supunha-se que, utilizando-se adequadamente
os métodos de investigação, a verdade se descortinaria diante dos cientistas —
os novos "magos" da civilização —, quaisquer que fossem suas opiniões
pessoais, seus valores sobre o bem e o mal, o certo e o errado.
Com a mesma proposta de isenção de valores com que se
descobriria a lei da gravitação dos corpos celestes no universo, julgava-se
possível descobrir as leis que regulavam as relações entre os homens na
sociedade, leis naturais que existiriam independentemente do credo, da opinião
e do julgamento humano. O poder do método científico assim se assemelhava ao
poder das antigas práticas mágicas: bem usado, revelaria ao homem a essência
da vida e suas formas de controle.
Toda essa nova mentalidade, reforçando a crença na
materialidade da vida e no poder da ciência, orientou a formação da primeira
escola científica do pensamento sociológico, o positivismo, que estudaremos no
próximo capítulo.
Um comentário:
o que vai cair em História na UPE do MD?
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