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12 de out. de 2010

ESPECIAL - JOAQUIM NABUCO - VESTIBULAR

Quem precisa de São Nabuco?
Historiadora mostra trechos da obra nabuquiana em que os negros são vistos como uma “raça” menos capaz e pede uma leitura mais dialética do homem que sentiu saudade do escravo

Pernambuco deu ao Brasil - e ao mundo - um santo sofisticado, fluente no francês, improvável gentleman saído da elite recifense. Esse santo não estava livre do racismo científico típico de seu momento em relação aos negros: enquanto pedia a abolição, mostrava acreditar na existência de uma "raça inferior" e "atrasada". É a partir dessa perspectiva que a historiadora Célia Maria Marinho de Azevedo analisa, sem glorificação, o rico e quase sempre incontestável legado nabuquiano. Autora dos livros Onda negra, medo branco e Antirracismo e seus paradoxos, além do contundente artigo Quem precisa de São Nabuco?, a professora de história aposentada da Universidade de Campinas (Unicamp) faz uma corajosa desconstrução do canônico abolicionista. Avisa: sua pesquisa não nasce para ferir Joaquim Nabuco, e sim para discuti-lo e humanizá-lo, percebendo-o como instante de seu tempo e contexto, não um candidato a posto no céu.

A reflexão proposta pela historiadora é permeada por uma ironia dirigida àqueles que cristalizaram a obra nabuquiana, evitando inclusive a sua oxigenação. "O processo de canonização de Joaquim Nabuco é bem antigo em nossa historiografia. Como não há um papa a presidir, é preciso visualizar a construção de São Nabuco em diversos momentos e gêneros discursivos - biografias, memórias, narrativas da abolição, discursos comemorativos, artigos de imprensa, livros didáticos, prefácios e resenhas de seus livros -, escritos inicialmente por amigos e admiradores, entre eles sua filha, Carolina Nabuco, e, posteriormente, por discípulos e admiradores", escreve ela no artigo publicado em 2001.

Em entrevista ao JC, a historiadora diz perceber que o processo de santificação perdura até hoje, com o próprio Nabuco ajudando nessa construção ao escrever uma biografia (Minha formação) sobre a sua vida de liberal monarquista. O livro, porém, não só ajuda a divulgar o santo: ele também deixa ver a postura de homem branco superior, que sente saudade do servilismo de seus queridos escravos. Aqui, ela se refere a um dos trechos do livro em que Nabuco relembra o tempo de criança no Engenho Massangana. Diz ele: "Deus conservara ali o coração do escravo, como o do animal fiel, longe do contato com tudo que o pudesse revoltar contra a sua dedicação".

"Os textos de Nabuco são lidos em geral pelos estudiosos brasileiros (acadêmicos e não acadêmicos) como uma descrição isenta e verdadeira da sociedade brasileira do século 19, ou seja, sem nenhum distanciamento crítico necessário a uma postura intelectual. Valeria pesquisar esse processo de canonização, mas posso adiantar que uma figura de peso do século 20, Gilberto Freyre, foi fundamental para que Nabuco não fosse esquecido como tantos outros homens de letras de seu tempo. Freyre, aliás, inspirou-se em Nabuco para enfatizar a desigualdade entre senhores, escravos e agregados vigente em tempos de escravidão e, ao mesmo tempo, reafirmar a inexistência de ódios raciais aqui desde tempos coloniais", diz.

Neste sentido, Freyre (que classificou "o menino de Massangana" como "afrancesado, anglicizado, ianquizado") não teria, ao contrário da leitura criticada por Célia Maria, extirpado de sua análise algumas colocações abertamente racistas de Nabuco (veja arte nesta página). Não deixa de ser curioso que o homem que cunharia a hoje refutada ideia da "democracia racial" seja também aquele que propôs olhar o abolicionista de maneira dialética.

Um dos principais perigos de uma análise higienizada da obra nabuquiana é a negação do racismo no Brasil no passado. Ele era uma realidade, e o fato de o político e embaixador lutar pela libertação dos escravos não deve ser visto como contraditório. "Ele era consistente em sua argumentação baseada nas mais recentes teorias científicas raciais de seu tempo. É por pensar o escravo africano ou afrodescendente como membro de uma 'raça' inferior que Nabuco pode discorrer tão livre e enfaticamente sobre os 'vícios do sangue africano' circulando em meio à 'nossa raça' (ou seja, a dele, a 'raça' branca). E se ele como filho de senhor de escravos - ele próprio teve seus escravos para servi-lo - cresceu acostumado a pensar nos escravos negros como algo próximo aos animais, decerto as teorias raciais científicas lhe proporcionaram o estofo necessário para que ele nunca duvidasse que os negros existiam para servir a gente como ele - as elites proprietárias brasileiras. Assim, em fins do século 19, Nabuco não encontrou melhor elogio, ao rememorar os escravos de seu Engenho Massangana, do que o de 'animais fiéis'", diz a historiadora.

Em seu artigo, ela critica dois respeitadíssimos autores– Evaldo Cabral de Mello e José Murilo de Carvalho – que em 2000 publicaram textos a respeito de Nabuco no jornal Folha de S.Paulo. No primeiro, Mello explica que, ao dizer "muitas das influências da escravidão podem ser atribuídas à raça", Nabuco se utiliza da palavra "raça" (leia mais a respeito do termo nas páginas 5 e 6) "sem rigor conceitual, desleixadamente". Já Carvalho, autor de Saudade do escravo, no qual também se refere ao trecho de Minha formação transcrito anteriormente, escreve: "O respeito que Nabuco merece nos proíbe qualquer ironia diante da confissão".

"Considero contraditória essa leitura de Nabuco, infelizmente bem atual, que pretende fixar canonicamente o modo como se deve lê-lo; ou seja, os novos leitores de Nabuco são convidados a passar por cima rapidamente de todos os trechos em que ele se alonga em expor a inferioridade racial da população negra brasileira, bem como a necessidade de importar 'sangue caucásico' (os imigrantes europeus) em grande quantidade para se promover uma mistura racial embranquecedora. Para esses estudiosos, o racismo de Nabuco, que se coloca com toda a evidência nessas passagens 'incômodas' de seus escritos, deve ser minimizado como um conjunto de 'escorregadelas' sem maior importância para o conjunto de sua obra. Mas, em minha opinião, não se trata de escorregadelas, e sim de uma visão coerente de Nabuco sobre 'nós' (a elite proprietária branca), cujo poder de mando devia ser perpetuado, e 'eles' (os escravos negros a serem emancipados e os brasileiros pobres afrodescendentes de um modo geral), cuja submissão eterna àqueles devia ser igualmente perpetuada."

BIGODE E COERÊNCIA
Para a professora Eliane Veras, da Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), é difícil falar em racismo no contexto da obra de Nabuco: para um momento permeado por teorias racistas, em que se acreditava que o negro não era capaz de se adaptar a um novo tempo, cabia apenas livrá-los do cárcere e deixar que participasse, desempenhando um papel menor (porque era "inferior"), da sociedade "adiantada". "É preciso entender que Nabuco falava em abolição, e não em questão racial. E o que para nós hoje é entendido como preconceito, naquele momento não era." Também sociólogo, Roberto Sales, da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), acredita que Nabuco não era racista: ele concordava com os valores higienistas que naquele momento eram difundidos em larga escala, sendo coerente com o espírito "iluminado" que varreu o Brasil depois de ter se espraiado pela Europa. "Ele não compartilhava desse preconceito do senso comum, mas isso não o inocenta nem o condena."

A adesão de Nabuco à causa negra também pode ser vista antes como um movimento político do que como um ato "humanista" ou mesmo piedoso, como se costuma pensar. Para o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Joaquim Barbosa, antes de ser um grande abolicionista, Nabuco era um grande estrategista. "A carreira dele teve várias reviravoltas, ele foi um monarquista, passou algum tempo no ostracismo e só depois é que vai aderir à República. Era liberal e depois aderiu aos conservadores", observa. Barbosa, no entanto, acha que esse movimento não macula a imagem nabuquiana: ela na verdade ajudanos a entender o cenário político atual.

"Não vejo nada de extraordinário nisso, é natural em uma pessoa que era tributária da carreira do pai. Nesse ponto, acho que ele se insere na tradição política brasileira, em que políticos locais assumem vários ideários. Nabuco só vai falar com palavras muito duras a respeito da escravidão quando a abolição já era inevitável."

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ARTE
Uma população "bárbara e selvagem"

Alguns trechos extraídos de Minha formação e O abolicionismo.

[Se o Brasil não tivesse sido dominado pela cobiça e pelo fanatismo religioso] “o cruzamento entre brancos e negros não teria sido acompanhado pelo abastardamento da raça mais adiantada pela raça mais atrasada, mas da gradual elevação da última.” (O abolicionismo, 1883)

"Os escravos dos engenhos nordestinos não só não se revoltavam contra sua condição, como revelavam gratidão ao senhor, a quem tudo davam. Eles perdoavam a dívida do senhor, anistiando, assim, os países que se construíram com base na escravidão. Sua doçura emprestava até mesmo um reflexo de bondade à opressão de que eram vítimas." (idem)

“Assim eu combati a escravidão com todas as minhas forças, repeli-a com toda a minha consciência, como a deformação utilitária da criatura, e na hora em que a vi acabar, pensei poder pedir também minha alforria, dizer o meu nunc dimittis, por ter ouvido a mais bela nova que em meus dias Deus pudesse mandar ao mundo; e, no entanto, hoje que ela está extinta, experimentando uma singular nostalgia, que muito espantaria um Garrison ou um John Brown: a saudade do escravo.” (Minha formação)

[Ao defender a abolição, Nabuco queria evitar a] “vindicta bárbara e selvagem de uma população mantida até hoje ao nível dos animais e cujas paixões, quebrado o freio do medo, não conheceriam limites no modo de satisfazer-se [...]” (O abolicionismo, 1883).

"Quando os primeiros africanos foram importados no Brasil, não pensaram os principais habitantes – é verdade que se o pensassem, isso não os impediria de fazê-lo, porque não tinham o patriotismo brasileiro – que preparavam para o futuro um povo composto na sua maioria de descendentes de escravos. Ainda hoje muita gente acredita que a introdução de cem ou duzentos mil chins seria um fato sem consequências étnicas e sociais importantes, mesmo depois de cinco ou seis gerações. O principal efeito da escravidão sobre a nossa população foi assim africanizá-la, saturá-la de sangue preto, como o principal efeito de qualquer grande empresa de imigração da China seria mongolizá-la, saturá-la de sangue amarelo. Chamada para a escravidão, a raça negra, só pelo fato de viver e propagar-se, foi-se tornando um elemento cada vez mais considerável da população [...]. Foi essa a primeira vingança das vítimas. Cada ventre escravo dava ao senhor três e quatro crias que ele reduzia a dinheiro; essas por sua vez multiplicavam-se e assim os vícios do sangue africano acabavam por entrar na circulação geral do país." (idem)


O negro, um mero “objeto de sciencia”
Baseados no positivismo, no evolucionismo e nas teorias que afirmavam a superioridade branca, homens como Nabuco incentivavam a imigração de europeus

“O homem livre, o homem branco, além de ser muito mais inteligente que o negro, que o africano boçal, tem o incentivo do salário que percebe, do proveito que tira do serviço, da fortuna enfim que pode acumular a bem de sua família. Há entre esses dois extremos, pois, um abismo que separa o homem do bruto. [...] Cada africano que se introduz no Brasil, além de afugentar o emigrante europeu, era em vez de um obreiro do futuro, o instrumento cego, o embaraço, o elemento de regresso das nossas indústrias.” Tavares Bastos, jurista e político fundador da Sociedade Internacional de Imigração (1866), era a favor da abolição dos escravos. Como se pode ler na sua frase, não porque acreditasse em algum tipo de equidade entre ele e os negros. Queria na verdade substituir os cativos por homens brancos assalariados, queria postos de trabalho que atraíssem imigrantes para o solo nacional a fim de promover mais ‘progresso’ ao País. E nesse progresso não havia espaço para pretos.

Bastos não estava sozinho em sua empreitada. Como ele, outros “ilustrados” também se baseavam, alguns sem saber, nas teorias do francês Joseph-Arthur de Gobineau (1816-1882). Foi ele que, em seu Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1853-1855), espraiou o que entendemos hoje como racismo. Ele está baseado na falsa crença da existência de várias raças humanas, no entendimento de diferenças entre tais raças e finalmente na ideia de que entre estas raças algumas são mais superiores que outras. Um britânico chegou para complementar o engano: Houston Stewart Chamberlain (1825-1927) é o pai do mito da superioridade da raça ariana, do qual Hitler se apropriaria através das ideias de Alfred Rosenberg (1893-1946). Este, munido de gráficos, números, tabelas e “pesquisas”, sustentou “cientificamente” o nazismo ao afirmar que judeus, ciganos, eslavos e homossexuais eram inferiores e o alemão personificava a perfeição da humanidade. Gobineau, Chamberlain e Rosenberg certamente não tomariam Bastos como um belo exemplar da “raça”. Mas aqui, em meio a um país irreversivelmente mestiço, ele abria os braços conclamando mais iguais. Mais brancos.

A Faculdade de Direito do Recife foi, em solo nacional, um dos centros de difusão da crença na inferioridade negra baseada no evolucionismo e no positivismo. “O negro não é só uma máquina econômica; ele é antes de tudo, e malgrado a sua ignorância, um objeto de sciencia", escreveria um de seus mais famosos integrantes, o crítico Sílvio Romero (1851-1914), no prefácio de Africanos no Brasil, livro de Nina Rodrigues, outro arauto do “racismo científico”. Romero acreditava que a mescla de cores trouxe-nos aspectos não desejáveis, por isso era mister embranquecermos. “Romero contribui para mostrar que o atraso estava ligado ao trabalho do índio, que seria lento, e ao escravo, que era causa de nossa estagnação econômica. Não estávamos, assim, aptos ao desenvolvimento, não estávamos prontos para um país novo, capitalista. Ele estava convencido de nossa inferioridade e por isso investe seu otimismo no branqueamento”, diz o sociólogo Arim Soares do Bem, da Universidade Federal de Alagoas (Ufal).

Segundo ele escreve no artigo Criminologia e etnicidade: culpa categórica e seletividade de negros no sistema judiciário brasileiro, a influência de Silvio Romero foi grande a ponto de estimular o recrutamento de imigrantes em vários países europeus, dando início a uma nova fase imigratória que somente foi interrompida com o processo de nacionalização da mão de obra introduzido por Getúlio Vargas na década de 30 do século 20. De 1880 até 1940, vieram para o Brasil cerca de 1,4 milhão de italianos, 1,2 milhão de portugueses, 580 mil espanhóis, 170 mil alemães, 108 mil russos e 47 mil poloneses. Nabuco, que nunca escondeu seu amor pela fleuma do Velho Mundo, era um dos entusiastas dessa invasão europeia. Usou-a, aliás, como base de seu projeto antiescravagista. Em um discurso na Câmara dos Deputados, em 1879, disse que o Brasil precisava urgentemente da abolição a fim de constituir uma nacionalidade apropriada com base no imigrante europeu, este dono de um “sangue caucásico, vivaz, enérgico e sadio”. Essa também era a percepção da elite nacional de uma maneira geral, que, se não chegou a discriminar legalmente o negro (como nos Estados Unidos das leis segregacionistas), terminou o legitimando como ser inferior ao relacionar seu estereótipo ao negativo, ao feio, além de privilegiar a estética e o pensamento que chegavam dos EUA e da Europa. Esse verdadeiro sentimento de inferioridade nacional perdura em parte até hoje nessa mesma elite (e de uma classe média que tenta copiá-la), que prefere aquilo que vem “de fora”.

PERIGO AMARELO
Além dos negros, que “cientificamente” eram rechaçados por terem “vícios” determinados geneticamente, os chineses também sofreram oposição de nomes como Nabuco quando o primeiro-ministro João Lins Vieira Cansanção de Sinimbu pediu um relatório sobre a imigração chinesa. Sua ideia era financiar uma missão de tratado até a Ásia. Queria atrair o povo dali para trabalhar nos campos daqui. A simpatia de Sinimbu reverberou negativamente entre a oposição. O então deputado Nabuco falou a respeito no mesmo contundente discurso citado acima. Colocava-se contra a entrada dos “amarelos” dizendo que “etnologicamente, vem criar um conflito de raças e degradar as existentes no País... Moralmente, porque vem introduzir na nossa sociedade essa lepra de vícios que infesta todas as cidades onde a imigração chinesa se estabelece”. É importante frisar que líderes negros envolvidos na abolição também se apoiaram no cientificismo para evitar os chineses, a exemplo de José do Patrocínio. Ele, ao comparecer a um “meeting de indignação” no Rio, após a abolição, disse: “O chim é incompatível com a nossa nacionalidade, não só por muitos motivos étnicos e biológicos, como porque é um péssimo fator econômico”. O fato é que a imigração chinesa também ameaçava o já frágil projeto de embranquecimento em voga na época, e era preciso combater qualquer novo agente que viesse macular a “raça branca”, aquela definida pelo abolicionista como “audaz, superior, mais inteligente, mais brilhante, com qualidades intelectuais, com caráter e coração, arte e relances de gênio”.

Outro nome forte da política nacional demostraria, quase setenta anos depois, que o racismo científico, apesar de ter perdido sua força a partir dos anos 30, ainda era uma realidade entre nós: no final do Estado Novo (1945), Getúlio Vargas assinou um decreto-lei que também estimulava a imigração europeia. Ele justificava seu ato apontando “a necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características básicas mais desejáveis de sua ascendência”.

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Fontes:
A negociação da identidade nacional : imigrantes, minorias e a luta pela etnicidade no Brasil (livro de Jeff Lesser); Onda negra, perigo branco (Maria Célia Azevedo); Joaquim Nabuco e a imigração chinesa (artigo de Nei Duclós) e Relatório de Desenvolvimento Humano - Brasil 2005 (ipea); As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil 120 anos após a abolição (livro org. Mário Theodoro)
JORNAL DO COMMERCIO ,15/08/2010

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