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3 de nov. de 2016

TRADIÇÕES E TRADUÇÕES NA CULTURA POPULAR EM PERNAMBUCO: ENTRE A DIVERSIDADE E A HOMOGENEIDADE

TRADIÇÕES E TRADUÇÕES NA CULTURA POPULAR EM PERNAMBUCO: ENTRE A DIVERSIDADE E A HOMOGENEIDADE

Isabel Cristina Martins Guilien
Doutora em História pela IJNICAMP e Prof". Departamento de História da UFPE.

Que Pernambuco é a terra da diversidade cultural, ninguém duvida! Mas será que podemos fazer uma avaliação do estado dessa diversidade, de quantas manifestações encontram-se em dificuldade para se manter? Em 2006, tive a oportunidade de coordenar um projeto de pesquisa que objetivava proceder a um mapeamento da documenta- ção existente em Pernambuco sobre as formas de expressão da cultura imaterial. Financiada pelo lphan e composta por uma equipe multidisciplinar, os resultados surpreenderam e foram além do esperado.' A pesquisa consistia em fazer um levantamento da documentação produzida sobre a cultura imaterial, e entendia-se por documentação" a produção bibliográfica, iconográfica e audiovisual existente em bibliotecas públicas. O levantamento foi feito em diferentes bibliotecas e arquivos do Estado, contemplando as seguintes cidades: Recife, Olinda, Vitória de Santo Antão, Goiana, Caruaru, Petrolina e Garanhuns. Definiu-se como critério para a seleção as bibliotecas que fossem abertas ao público, descartando-se da pesquisa as bibliotecas particulares ou com acesso restrito ² .
O trabalho nas bibliotecas revelou o quanto o tema "cultura imaterial" e "patrimônio material" está distante do universo da pesquisa corriqueira, pois nem atendentes das bibliotecas estavam familiarizados com o tema, nem as palavras chave mencionadas, quando utilizadas nos instrumentos de busca, mostravam resultados significativos. O que funcionava mesmo, tanto para os atenden- les quanto para os mecanismos de busca nos acervos eram as velhas cultura popular' e folclore. Já prevendo que o tema ainda é uma novidade para o grande público, principalmente os estudantes do ensino médio e mesmo os universitários, aliamos a necessidade de pesquisar no interior do Estado com a importância de divulgar a existência de uma nova noção de patrimônio, bem como as implicações políticas e cultural para Pernambuco e para o Brasil. Assim sendo, juntamente com o trabalho nas bibliotecas e acervos o projeto previa a realização de seminários de sensibilização que intensionavam informar e divulgar as políticas públicas sobre o património imaterial. Ao mesmo tempo os seminários e os debates suscitados permitiram à equipe tomar conhecimento de que havia uma grande disparidade entre o que estava documentado e as manifestações existentes nas várias regiões do Estado de Pernambuco. Essa conjução de circunstâncias e fatores propiciou que muitos problemas pudessem ser formulados pela equipe, grande parte deles referentes à situação dos registros documentais sobre a cultura popular diante da diversidade de manifestações que existem em Pernambuco. Neste artigo propõe-se uma reflexão sobre a disparidade encontrada entre a diversidade de formas de expressão e os poucos registros levantados sobre as mesmas. Em consequência, discutirei as imbricações nas políticas públicas a respeito daultura imaterial e seu processo de patrimonialização.
Patrimônio imaterial: oralidade, memória e as ambiguidades do registro documental
É inquestionável que o patrimônio imaterial ou intangível tem estado em evidência na contemporaneidade. Alicerçado em uma concepção antropológica de cultura, ele é também o resultado de um longo e complexo debate tanto nacional quanto internacional acerca da noção de patrimônio e no alargamento do seu sentido. Por patrimônio cultural entende-se o conjunto de bens culturais e simbólicos criados por um grupo social ou povo ao largo de sua histó- ria, e que o identifica em relação a outros grupos ou povos. Esse patrimônio é responsável pela projeção cultural de um grupo ou povo, além de ser definidor de identidade. A definição de patrimônio incorpora a ciência, tecnologia, arte, tradições, monumentos, costumes e práticas sociais de matizes diversos. Nas relações sociais e culturais estabelecidas entre os homens e com a natureza o conhecimento desse patrimônio é indispensável, pois permite que a sociedade continue existindo, tal qual foi caracterizada por sua cultura e história. Apesar de, tecnicamente, se fazer uma distinção entre o patrimônio material do intangível, Manuela Carneiro da Cunha (2005) observou com maestria a indissociabilidade entre o material e imaterial. De acordo com a Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da Unesco (2003), o património imaterial é constituído pelas práticas, representações, expressões, conhecimentos, habilidades, assim como instrumentos, artefatos e espa- ços culturais associados, que as comunidades, grupos e em alguns casos os indivíduos reconhecem como parte de seu patrimônio, transmitido de geração a geração, constantemente recriado em resposta à interação com a natureza e a história, proporcionando, como já referido, sentido de identidade. Ainda de acordo com a convenção da Unesco o patrimônio imaterial se manifesta de diversas formas agrupando tradições e expressões orais, expressões artísticas, nos quais mitos, lendas e rituais a oralidade desempenha um papel fundamental, interconectando e transmitindo esse saber. Nesse sentido, o registro ou documentação desse patrimônio imaterial exige a transposição desse saber para outros suportes que não os usados tradicionalmente por quem os detinha. Ao mesmo tempo, não há como deixar de apontar para as ambiguidades que o processo de patrimonialização têm criado, pois o campo do patrimônio
é um campo de representações e, neste sentido, não se confunde com a realidade onde se movem os agentes em suas práticas sociais. Não temos como protegera realidade, nem como conter seus movimentos, seus embates, suas forças de vida. (ABREU, 2005, p. 54)
Este é um dos grandes paradoxos que as políticas públicas sobre o patrimônio imaterial têm se deparado: a necessidade de criar salvaguardas para que a oralidade como forma de transmissão do saber continue a existir num mundo cada dia mais globalizado em que os meios de comunicação produzem registros em mídias diversas. Walter Benjamin já tinha apontado há décadas atrás que não se contavam mais histórias com o mesmo espírito das comunidades tradicionais, pois acabou o tempo em que o tempo não vem ao caso(1989, p63) Agora, mais do que nunca, o registro documental e políticas de salvaguarda de inúmeras manifestações culturais são urgentes. Dependendo da oralidade para sua transmissão encontram-se em séria dificuldade para fazer com que as novas gerações tenham acesso ao saber-fazer que lhes dão suporte, encontram-se ameaçadas ou em perigo de deixarem de existir em função da fragilidade das formas de transmissão do saberfazer em questão, diante das formas de comunicação do mundo globalizado. Não há aqui a intenção de se fazer uma apologia pela "preservação" cultural, ao modo dos folcboristas do século XIX e início do XX, que viam as manifestações culturais em constante perigo de desaparecimento. Entendese a cultura como dinâmica e histórica, e nesse sentido aponto a discussão efetuada por SALHINS (1997) contribui para dirimir quais dúvidas quanto aos desejos de "preservação" cultural. Não obstante, seria ingenuidade achar que os novos meios de comunicação podem fazer o mesmo papel que a oralidade, e que as novas formas de transmissão não modificarão substancialmente as formas de expressão que dependiam de um saber-fazer que tinha na oralidade seu grande suporte. Podemos citar como exemplo, a história recente dos maracatus-nação que alcançaram sucesso, e cujos mestres têm sido convidados a ministrar oficinas para ensinar a tocar os instrumentos que compõem o batuque, enquanto que o cortejo não recebe as mesmas atenções da mídia. Processo semelhante ocorre com o boi do Maranhão, cujo auto não encontra nos espetáculos o mesmo espaço que a música. E evidente que nem por isso essas formas de expressão podem ser consideradas "ameaçadas" de desaparecimento, mas é inegável que o processo de espetacularização provocou mudanças significativas, estudadas por LIMA & GUILLEN (2007) A essas formas de transmissão oral se associa a memória, como uma combinação indissolúvel. Memória e patrimônio se relacionam, e devem estar no centro de nossas investigações, não para "preservar" a cultura, congelando-a, mas como um dos direitos esseciais para o exercício de uma cidadania plena. Muito já se escreveu na historiografia brasileira sobre o silenciamento e o ocultamento de diversos grupos sociais na história. Tendo em perpectiva uma noção de história aberta para o futuro, viva, respondendo às questões políticas e culturais do presente, por se tratar de uma forma de conhecimento e referência sobre a experi- ência social, o direito à memória e seu legado às gerações futuras deve ser garantido pelas políticas públicas que objetivam lidar com o patrimônio cultural. (CHAUI, 2006; PAOLI, 1992) Não poderia deixar de ressaltar que, neste campo, a dimensão política da noção de patrimônio emerge com toda força. O campo do patrimônio não é um "lugar de apaziguamento", pois expressa disputas e conflitos. Como podem os povos indígenas legar um patrimônio em que o saber sobre o mundo natural é fundamental se o meio ambiente encontra-se ameaçado de destruição? O que dizer dos direitos de tantas mú- sicas tradicionais que ainda hoje são gravadas e reproduzidas como "domínio público"? E outros tantos exemplos que poderíamos citar, estendendo-nos muito nessas ambiguidades entre a produção cultural dos grupos tradicionais, e a garantia de retorno dos benefícios econômicos que são gerados a partir do momento em que essas expressões culturais adentram o mercado. As políticas públicas existentes no Brasil sobre o patrimônio imaterial seguem a tendências internacionais, bem como os ditames propostos pela Unesco desde 1989, quando lançou o programa de salvaguarda das culturas tradicionais que, diante do crescente processo de globalização necessitariam de proteção, seja porque se encontravam em processo de desaparecimento, ou porque tornavam-se objeto de cobiça no mercado cultural que passou a definir as manifestações culturais simplesmente de bens. Estes se encontram a cada dia mais valorizados pela possibilidade de ampliar esse mercado cultural com a criação de novos bens de consumo, seja através de turismo cultural ou mesmo com a produção de bens comercializáveis. As políticas públicas em âmbito mundial têm como escopo, portanto, a preocupação em criar mecanismos que protejam as culturas tradicionais da espoliação de seu capital cultural diante da ampliação do mercado cultural e da inserção das manifestações nesse mesmo mercado, sem que isso traduza ou se reverta em benefício de quem produz efetivamente os bens culturais ou os grupos e povos que são detentores desse saber-fazer. As políticas públicas a respeito do patrimônio imaterial, portanto, demandam ações de salvaguarda e registros dos bens culturais a serem patrimonializados.
Uma reflexão fundamental tem surgido desse debate: a escolha do que constitui o patrimônio de uma nação -  seja ele material ou intangível - é uma das operações políticas mais importantes para a consolidação de uma determinada história, memória e cultura comuns (ABREU, 2007, p. 353).
As questões suscitadas em torno do debate do patrimônio são extremamente complexas e não têm uma resposta pronta e rápida, já que estão sendo construídas na prática, no fazer-se das manifestações culturais e em sua relação com as instituições governamentais e com o mercado. Mas o que importa para nossa discussão é destacar que estamos sendo obrigados a repensar a idéia de patrimônio nacional e que este não é constituído apenas de monumento, igrejas e prédios antigos. Temos a oportunidade de constatar que estamos diante de novas políticas da memória e de novas formas de administração institucional do passado. Destaca-se o fato de que novas políticas da cultura têm nos dado a oportunidade de criar novas culturas políticas para a construção da identidade, memória e história nacional. Diferentes grupos sociais estão tendo a oportunidade pela primeira vez na História do Brasil de registrar uma memória do seu passado fundamental para a definição das identidades. E são aqueles grupos em sua maioria considerados como tradicionais e que foram em grande medida silenciados na construção da memória nacional. Têm se criado novos canais de expressão cultural e oportunidade ímpar de colocar em discussão as políticas de construção da memória nacional. Esse processo não tem se dado evidentemente sem tensões, conflitos, resistências e adesões, e pleno de ambiguidades. O que não se pode, é banalizar nem o processo, nem as manifestações culturais que têm sido objeto de discussão, registro e inventário. Tanto no âmbito federal, quanto no estadual, diversas políticas públicas têm sido formuladas para fomentar o registro dos bens da cultura imaterial, e, a produção de documentação sobre esses bens tem sido ressaltada como medida fundamental para que o patrimônio imaterial possa ser transmitido para as gerações futuras. Essas medidas têm facilitado o registro dos bens, ao mesmo tempo em que o processo de globalização colocou esses mesmos bens em contato com um mercado cada dia mais veroz quando se trata de produzir e consumir novos bens culturais. A tensão presente entre a vontade de conservar as manifestações e muitas vezes sua relação mercantil, que a transforma num bem, tensiona essas políticas públicas a ponto de incongruências poderem ser apontada amiúde.
O patrimônio imaterial em Pernambuco
Como se pode perceber, em Pernambuco, o debate também tem sido intenso. A imagem de Pernambuco associam-se, como que naturalmente, uma sede de outras referenciadas em práticas da cultura popular: o carnaval do Recife com seus clubes e blocos de frevo, os maracalus e os caboclinhos, a literatura de cordel e a xilogravura de J. Borges, os bonecos de barro de mestre Vitalino, a feira de Caruaru, as bandas de pífanos, o xote, o xaxado e o baião, entre outras, que conferem ao conjunto identidade cultural e histórica. Da mesma forma, não se dissocia da construção imagética de Nordeste referências à cultura popular. Se por muito tempo essas manifestações foram naturalmente consideradas como constitutivas de uma tradição, hoje passam por um processo de intensa discussão que tem redundado na patrimonialização de alguns bens culturais, como a feira de Caruaru e o Frevo - já registrados como patrimônio da cultura imaterial do Brasil—, enquanto o Maracatu Nação, o Maracatu Rural, Caboclinho e Cavalo Marinho encontram-se em processo de reconhecimento. No âmbito estadual, desde 2002, a lei 12.196 instituiu o Registro do Patrimônio Vivo do Estado de Pernambuco, que reconheceu os saberes e as práticas de mestres e mestras da cultura popular como fundamentais para a memória e cultura estadual, a exemplo de Mestre Salustiano, Ana das Carrancas, Lia de ltamaracá, Manoel Eudócio, dentre outros. Assiste-se, na sociedade contemporânea, um complexo processo que tem resultado na patrimonialização da cultura popular, processo este que tem uma história na qual uma série de debates sobre a cultura popular redundou em políticas públicas de reconhecimento, nas quais uma memória histórica e cultural também tem sido discutida. Essas políticas públicas, ainda que não se coloquem totalmente a reboque dos debates suscitados pelas ações da Unesco, estão em consonância com as discussões levadas a efeito mundialmente sobre a necessidade de criar instrumentos para que antigas tradições tenham condições de deixar para as gerações futuras esse saber-fazer que constitui a experi- ência da humanidade"³ . Nesse sentido, a Unesco recomenda que se envidem esforços para criar instituições que preservem e tornem disponível amplamente documentação sobre o patrimônio cultural imaterial do país e/ou região. Inserido nesse contexto, o projeto "Formas de expressão da cultura imaterial de Pemambuco' realizado de forma interinstitucional entre o lphan, a Fundação Joaquim Nabuco, a Universidade Federal de Pernambuco e a Universidade Federal Rural de Pernambuco teve por objetivo realizar um mapeamento bibliográfico e audiovisual das manifestações da cultura imaterial presentes em Pemambuco. A pesquisa atendeu ao Edital do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial- PNPI/2006, que no âmbito da pesquisa, documentação e informação, tem suas principais linhas de ação voltadas para: a) Realização de pesquisa, levantamentos, mapeamentos e inventários; b) Apoio à instrução de processos de Registro; c) Sistematização de informações, constituição e implantação de banco de dados; d) Apoio à produção, conservação de acervos documentais e etnográficos, considerados fontes fundamentais de informação sobre patrimônio cultural imaterial. Em consonância com essas linhas de ação, o Edital apresentava a proposta de levantamento documental de saberes e modos de fazer, formas de expressão, festas e celebrações, e lugares ou espaços de práticas culturais coletivas, por Unidade da Federação, e conjuntamente diagnóstico da situação das instituições que abrigam esses acervos documentais". (PNPI, 2006. p. 1) A proposta do projeto em questão restringia-se a levantar a documentação existente sobre as formas de expressão e bens culturais referenciados, dada a diversidade de bens culturais existentes no Estado de Pernambuco. Pensávamos que essa riqueza se traduziria em uma grande quantidade documental, difícil de ser levantada em apenas um ano, como o próprio edital limitava. No entanto, para o lphan, era interessante que o banco de dados que resultaria desse levantamento contemplasse uma gama maior de bens culturais, e um acordo foi firmado com a equipe para que as outras categorias (lugares, ofícios, celebrações) fossem arroladas numa documentação de escritores e estudiosos considerados como clássicos da historiografia pernambucana: Gilberto Freyre, Mário de Andrade, Câmara Cascudo, Waldemar Valente, Mário Souto Maior, Mário Sette e Pereira da Costa. Desde o final do século XIX os estudos sobre folclore e cultura popular estiveram presentes na produção bibliográfica pernambucana se estendendo até os dias de hoje, resultando numa farta produção documental. Essa produção extensa pode ser explicada pela estreita relação das culturas tradicionais com a constituição imagéticodiscursiva da região Nordeste, em que o folclore adquiriu um status central como referência identitária da região. A vinculação entre a cultura popular e a construção simbólica da identidade regional e, em particular, à memória do Estado, produziu um grande acervo sobre bens da cultura imaterial. Há um sem número de obras com temáticas relacionadas ao folclore pernambucano, sem contar a produção de artigos dirigidos ao tema, que não estão sendo objeto de análise do levantamento. Vale ressaltar que, nos últimos anos, a cultura popular pernambucana vem alcançando cada vez mais projeção, ultrapassando a expressão local e expandindo-se tanto em âmbito nacional como internacional, através do processo de globalização, do renovado interesse que diversos atores sociais têm demonstrado pela cultura popular devido às novas formas de mídia atuando na disseminação das expressões culturais. Diante da diversidade cultural presente nas manifestações da cultura imaterial no Estado e da necessidade de identificação das práticas existentes, a demanda pelo levantamento documental sobre o patrimônio imaterial exige uma mobilização de vários atores sociais dentre os quais pesquisadores, estudantes, produtores culturais, artistas, instituições governamentais e não-governamentais com a finalidade de ampliar o repertório das práticas de preservação que, neste caso, constituemse dos registros dessas manifestações.
Levantamento documental: questões suscitadas
O esforço de levantar e sistematizar dados sobre os diversos bens da cultura imaterial em Pernambuco pode ser pensado como uma ação cultural que tem como foco uma visão da cultura como produtora e criadora de oportunidade de inserção social e política (cidadã) dos grupos detentores de saber tradicional. Nesse sentido, o banco de dados surge como um instrumento de empoderamento desses grupos e da sociedade civil ao fornecer subsídios para pedidos de registro dos bens como patrimônio imaterial. O banco de dados deve facilitar os primeiros passos para quem deseja ter acesso aos registros documentais sobre os bens culturais com objetivos diversos. Sem esquecer os impasses e implicações políticas decorrentes da patrimonialização de conhecimentos tradicionais, em que as diversas formas de apropriação desse conhecimento sem que direitos intelectuais sejam postos em discussão são questionáveis e questionadas, o reconhecimento desse patrimônio pode igualmente ser pensada como um esforço dos grupos e comunidades para se manter na condição de sujeitos em negociação com a sociedade como um todo. Principalmente as ações de salvaguarda podem proporcionar garantia de continuidade de um saber do grupo e/ou comunidade para as gerações Muras (COELHO, 2003; ANDRELLO, 2008). Como critérios diante da diversidade documental encontrada estabelecemos que fariam parte do levantamento as culturais tradicionais que tinham como base de transmissão a tradição oral, bem como as manifestações que se encontravam ameaçadas.
Nesse sentido, ficaram fora de nosso levantamento a grande produção, por exemplo, de registros sonoros do frevo, forró, baião, etc. Essa escolha justifica-se como já foi salientado, pela enorme quantidade de registros encontrada, explicada pelo fato de que estavam já inseridos num mercado cultural que tem produzido uma grande quantidade de registros documentais. Por outro lado, lembramos que o frevo foi objeto de um levantamento semelhante, no processo de sua pathmonializaçáo. Da mesma forma, acreditamos que o forró, baião e congêneres necessitam de um registro específico diante da riqueza e diversidade que a pesquisa sinalizou. Em resumo, o projeto de pesquisa em questão privilegiou em seu levantamento os bens da cultura imaterial, especialmente as formas de expressão que têm ainda na oralidade sua principal forma de reprodução do saber, e que necessitam por sua vez de políticas públicas mais urgentes, dai a necessidade de um banco de dados que possa subsidiá-las. A medida que estendíamos a pesquisa para o interior do Estado, aliado ao fato de que nessas cidades onde fizemos o levantamento documental também promovemos seminários de sensibilização onde a cultura imaterial, sempre com bom público e provocando debates e questionamentos, uma melhor compreensão da situação dos bens culturais em questão foi se formando para a equipe, e discutida em constantes reuniões semanais. Surpreendeu a equipe encontrar uma grande diversidade de bens culturais existentes no interior do Estado e que não foram documentalmente registrados, que não foram objetos de estudos mais sistemáticos, seja pelo folclore no seu sentido amplo, seja pelas ciências sociais ou mesmo dos historiadores locais. Poderíamos citar o "samba de véio" da ilha do Massangano, Petrolina, vários tipos de coco e samba da região de Garanhuns, a Confraria do Rosário da cidade de Floresta, que mantém a tradição de eleição de rei congo, entre outras. A Confraria do Rosário foi contemplada em 2007 com o prêmio do Patrimônio Vivo, mas a documentação existente sobre o grupo ainda é bastante pobre. Existem, naturalmente, muitas outras manifestações que sequer ficamos conhecendo! Não podemos deixar de destacar que merecem estudos sistemáticos alguns conjuntos de bens culturais, como as manifesta- ções do catolicismo popular, pois procissões, romarias e outras expressões culturais não se encontram devidamente documentadas. A superficialidade com que foram tratados certos temas, extremamente complexos em que imbricações com religião, cultura e identidade surpreendeu negativamente toda a equipe. Podemos citar, como exemplo, todo o conjunto de festejos associados à procissão de Nossa Senhora da Conceição, impressionantemente ignorada pela academia! E não se trata apenas do catolicismo, pois as manifestações culturais associadas às religiões afro-descendentes padecem de processo semelhante. Apesar de mais bem estudadas pela Antropologia, Xangô e Jurema ainda demandam estudos sistemáticos sobre suas celebrações, sobre os lugares sagrados dos quais a religião depende, sem deixar de mencionar a diversidade de toadas e músicas que encontram-se precariamente documentadas. Há toda uma plasticidade e musicalidade associadas a essas cerimônias que necessitam de registros complexos. Esperamos e recomendamos um direcionamento das políticas públicas do lphan para o inventário dessas manifestações existentes no interior e não documentadas. Se a política do patrimônio se presta a preservar a memória dos grupos que têm esses bens como referências culturais, ou se presta apenas para celebrar a diversidade cultural e nobilitar para o mercado novos bens, eis um dilema a ser discutido e questionado. E o direcionamento das políticas públicas pode ser percebido de imediato quando se privilegia o espetáculo e se contempla com menos recursos ações para a salvaguarda desses bens. Dentre os bens levantados pela pesquisa alguns merecem destaque. Foi surpreendente constatar, durante a redação das descri- ções dos bens levantados, a forte presença da cultura indígena no interior do Estado. Ainda que sejam considerados como "remanescentes" dos antigos grupos que ocupavam a região durante o período colonial, estudos promovidos por teses e dissertações têm apontado para a complexidade identitária desses grupos bem como o papel central da cultura imaterial na sua afirmação (OLIVEIRA, 1998; 1999). Dentre os grupos indígenas existentes em Pernambuco destacam-se:
FuIni-Ô: vivem no município de Águas Belas. Conservam o idioma Yathê e alguns rituais como o Ouricuri.
Pankararu: vivem entre os municípios de Tacaratu, Jatobá e Petrolândia, conservando algumas de suas festas tradicionais como a Festa do Menino do Rancho e o Flechamento do Umbu.
Xucuru: vivem na região da Serra do Ororubá, município de Pesqueira, conservam algumas festas religiosas como a de Nossa Senhora da Montanha.
A cultura imaterial desSes grupos tem sido documentada em teses e dissertações desenvolvidas nas universidades, destacando-se os programas de Antropologia e Etnomusicologia da UFPE. Notadamente este último núcleo conserva em seu acervo uma rica documentação sonora e visual, resultante de pesquisas em grupo coordenadas pelo prof. Carlos Sandroni. O toré foi sem dúvida a manifestação mais estudada e discutida nesses trabalhos, em que foi apontado seu papel na definição da identidade dos grupos (GRUNEWALD, 2005). No entanto, essas teses e dissertações, bem como as questões que suscitaram, não têm chegado ao grande público, o que me parece fundamental para que as políticas públicas sejam reformuladas para atenderem às necessidades desses grupos. A forte presença africana na cultura pernambucana traduzida no sucesso dos maracatus na contemporaneidade, no reconhecimento dos afoxés corno grupos culturais pemambucanos que têm suas peculiaridades e especificidades, na importância de terreiros de xangô, como o Sítio de Pai Adão e o Vê Axé Oyá Mengué - ou Seita Africana Santa Bárbara da Nação Xambá - tidos como guardiões de suas tradições religiosas e culturais, sem falar na capoeira, nas escolas de samba e outras manifestações culturais em que a presença de negros e negras tem sido fundamental. Começam a aparecer teses e dissertações sobre a cultura afro-descendente, delineando as diferenças entre os grupos e a complexidade das manifestações apontadas, o que indica a necessidade de em alguns anos se atualizar banco de dados. Assim como se pode perceber que certas manifestações até bem recentemente consideradas não pernambucanas começam a ser estudadas, como os afoxés e escolas de samba, buscando entender as peculiaridades dos grupos locais e que são responsáveis pela definição de identidade dos grupos de afro-descendentes.
O legado do patrimônio imaterial
Acima de qualquer dúvida, a pesquisa suscitou em toda a equipe a convicção que as políticas públicas devem redundar na produ- ção de documentação sobre os bens inventanados, para que o patrimônio não se firma apenas como um elemento nobilftador dos dirigentes polí&os que definem essas mesmas políticas públicas. Como exemplo, citamos o Patrimônio Vivo, que tem contemplado com uma renda mensal grandes mestres e grupos da cultura popular, mas até o presente não tem produzido um registro dos bens culturais associados a esses "patrimônios". A Lei do Registro do Patrimônio Vivo (Lei n° 12.196, de 2 de maio de 2002) tem como objetivo preservar as manifestações populares e tradicionais da cultura pernambucana, bem como propiciar condições para que os artistas repassem seus conhecimentos às novas gerações. Há evidentemente mestres que questionam essa obrigação. J. Borges, xilogravurista renomado, já afirmou categoricamente, por exemplo, que contribuiu bastante com a cultura popular e não se vê obrigado em função do "prêmio" a trabalhar mais. No lado oposto, Dila, também xilogravurista, tem acompanhado os festivais de inverno promovidos pela gerações futuras.
Dentre as formas de expressão existentes no Estado, e que têm atraído muita aten- ção da mídia de modo amplo, destacam-se o maracatu rural e o cavalo marinho, secundado pelo caboclinho. E interessante observar que, apesar de intensamente referidos, a documentação levantada não reflete a complexidade dessas formas de expressão bem como sua inserção no mercado cultural contemporâneo. Muitos dos trabalhos levantados limitam-se a repetir um saber consagrado retirado de alguns poucos autores que estudaram essas manifestações no passado. Esperamos que as políticas públicas sobre a cultura imaterial consigam enfrentar o desafio de provocar inventários que registrem a complexidade dos diversos bens levantados, e não apenas apontar novos "bens culturais" a serem absorvidos pelo mercado. Que essas políticas públicas possam realmente transformar a memória social que suporta as referências culturais dos grupos em patrimônio imaterial, pois, enquanto essas manifestações não forem documentadas sua transmissão para as gerações futuras pode estar comprometida. O grande desafio, no entanto, continua sendo criar mecanismos de registro sem que se perca de vista a intangibilidade dos sistemas simbólicos e culturais, para que se possa valorizar a cultura sem que se corra o risco de cristalizá-Ia. Fundarpe dando oficinas com resultados surpreendentes. Mas não há como deixar de salientar que é obgação do Estado documentar essas experiências. A respeito do Patrimônio Vivo já eleito é preciso nos determos com mais vagar sobre o que existe de documentação sobre os bens que os mestres detêm o saber-fazer. Dentre os mestres destacam-se os cordelistas e xilogravustas J. Borges, J.Costa Leite e Dila. Ainda que não tenha sido o propósito do projeto levantar as coleções de cordel e xilogravuras existentes em bibliotecas, é seguro afirmar que nenhuma biblioteca pública em Pernambuco detém conjunto significativo da obra desses patrimônios vivos! As grandes coleções de folhetos de cordel foram formadas por colecionadores particulares, como Liêdo Maranhão e Roberto Benjamim, da mesma forma que as xilogravuras produzidas pelos mestres em questão não se encontram nos museus e departamentos iconográficos, como conjunto significativo das obras. Uma ou outra instituição possui alguns exemplares. Mas é urgente que os administradores públicos responsáveis pela gestão do Patrimônio Vivo possa recolher às bibliotecas um conjunto dos bens culturais produzidos pelos mestres. Acreditamos que é dever do Estado não apenas criar condições para que os mestres possam reproduzir seu saber, mas que sua obra permaneça  para as gerações futuras.
Notas

O projeto em questão foi: Formas de Expressão da Cultura Imaterial em Pernambuco, desenvolvida em parceria com a IIFPE, IJFRPE, Fundação Joaquim Nabuco e lphan, sob minha coordenação e com a participação de Carlos Sandroni, Bartoomeu fito de Medeiros, Maria Angela de Faria Gritlo, Sytvia Costa Couceiro, Cibele Barbosa da Silva Andrade, Rita de Cássia Araújo e Joanildo Bury. Participaram ainda como pesquisadores João Paulo França, Banira Queiroz de Souza e Cicera Patricia Alcântara Bezerra, e como alunos bolsistas: Débora Halide Claizoni, Vanessa Marinho, lngrid Moura, José Bezerra de Brito Neto; Sanae Souto; Frank Souto Maior, Leocádia Ferreira. 2 Exceção foi feita ao riquíssimo acervo da Comissão Penambucena de Folclore. Aproveitamos a oportunidade para divulgar a riqueza ímpar desse acervo e a necessidade de organiza-lo para que possa ser aberto ao público sem restrições. Não há como deixar de mencionar o excelente trabalho fedo pelos pesquisadores Roberto Câmara Benjamim e Jossé Fernando Souza Silva que têm conservado tão rico acervo. A legislação existente no Brasil reflete muitos dessas questões, e nesse sentido é importante consultar:BRASIL. GOVERNO FEDERAL. 2000. Decreto 3.551, de 04 de agosto de 2000. Disponívet em: http:flwww.minc.gov.br; BRASIL.Ministério da Cultura. 2006. Edital PNPI n° 001) 2006. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. UNESCO. 2003. Convenção para Salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. Paris, 17 de outubro de 2003.

Disponível em: http://unesdoc.unesco.org ; Lei 12196, disponível em: vw.sare.pe.gov.brIJuridicoILeis_OrdinariasI 200211 21 96020502 RegistroPatrtrnonio VivoEstado Pe.doc Tradições e traduções na cultura popular em Pernambuco: entre a diversidade e a homogeneidade Isabel Cristina Martins GuilIeri 170 Referências bibliográficas ABREU, Regina. Patrimônio e cultura: novos desafios na era do intangível. Anais do Museu Histórico Nacional, v. XXXVII, p. 54-68, 2005. ABREU, Regina & CHAGAS, Mário. Memória e Patrimônio. Ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro. DP&A, 2003. ABREU, Martha. "Cultura imaterial e patrimônio histórico nacional". In: ABREU, M.; SOIHET, R.; GONTIJO, R. Cultura política e leituras do passado. Historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2007. ANDRELLO, Geraldo; FERREIRA, Pedro R Conhecimento tradicional como patrimônio imateriai: mito e política entre os povos indígenas do Rio Negro. Ciência e Cultura, v. 60, n. 01, 2008, BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: contribuição a uma sociologia das interpenetrações de civilizações. São Paulo: Pioneira, 1971. BENJAMIN. W. "O narrador". In: Obras Escolhidas. São Paulo, Abril Cultural, 1989. CABRAL, João de Pina. A pessoa e o dilema brasileiro: uma perspectiva anticesurista. São Paulo: Novos estudos Cebrap. n. 78, pp,95-I11, jul. 2007. Disponível em: www.scielo.brlpdf/nec/ n78/1 0.pdf CANCLINI, Néstor (e outros) Políticas culturais para o desenvolvimento. Brasília, Unesco, 2003. CARVALHO, Valéria NeIy Cezar de. "Os índios e os cientistas sociais em questão". In: CHAUI, MarIene de Souza. Cidadania cultural. O direito à cultura. São Paulo, Fundação Perseu Abrarno, 2006. CIDADANIA: NOVAS PERSPECTIVAS DA SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO. João Pessoa 2008. Anais. João Pessoa: UFPB/ ISA, 1, CD-ROM, 2006. CONFERÊNCIA INTERNACIONAL EDUCA- ÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução, Revistado Patrimônio, 32, p. 15-27, 2005. COELHO, Teixeira. "Banco de dados: do inerte cultural à cultura da vida". In: CUNHA, Manuela Carneiro da. Introdução. Revista do Patrimônio, 32, p. 15-27, 2005. GUSMÃO, Neusa Maria Mendes de. Os filhos da África em Portugal:Antropologia, mufficulturalidade e educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. OLIVEIRA, João Pacheco de. Ensaios em Antropologia Histórica. Rio de Janeiro, UFRJ, 1999; Oliveira, João Pacheco de. "Uma etnologia dos 'índios misturados'? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais". Mana, v. 4, n. 1, abril, p. 47-77, 1998. PAOLI, Maria Célia. "Memória, história e cidadania: o direito ao passado". In: FENELON, Dea Ribeiro (org.) O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania. São Paulo, DPH, 1992. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995 SAHLINS, Marshall. O "pessiomismo sentimental" e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um "objeto" em via de extinção (Parte 1). Mana, n. 3. v. 1, p. 41-73, 1997. ______ O "pessiomismo sentimental" e a experiência etnográfica: por que a cultura não é um "objeto" em via de extinção (Pane II). Mana, n. 3, v. 2, p. 103-150, 1997. SEMPRINI, Andréa, Multiculturalismo. São Paulo: EDUSC1999. TEIXEIRA, Inês A. de Castro e PÁDUA, Karla Cunha. "Virtualidades e Alcances da Entrevista Narrativa". In: CONGRESSO INTERNACIONAL SOBRE PESQUISA (AUTO) BIOGRÁFICA, II, 2006, Salvador. Anais... Salvador: Uneb, 1, CDROM, 2006. TEIXEIRA, 1. A. C, PRAXEDES, V. L. e PÁDUA, K. C. et ai (Orgs.). Memórias e percursos de estudantes negros e negras na UFMG. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. VIEGAS, Susana de Matos. Terra Calada: os Tupinambá na Mata Atlântica do sul da Bahia. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. "Trilhas: território e idenfidade entre os índios do sul da Bahia/Brasil". ln: RAMALHO, M. 1. E RIBEIRO, A. S. (Orgs.). Entre ser e estar: raízes, percursos e discursos da identidade, v VIII, Parte 1. Porto: Edições Afrontamento, p. 185-211, 2002. WIEVIORK.A, Michel. A Diferença. Lisboa: Fenda, 2002. Tradições e traduções na cultura popular em Pernambuco: entre a diversidade e a homogeneldade Isabel Cristina Martins Gulilen 171

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